sábado, agosto 18, 2001

 
(((As pessoas tornam-se empresas)))
Pierre Lévy

É característico do mundo contemporâneo, a partir de agora, que todo mundo faça
comércio, isto é, compre e venda bens e serviços. E todo mundo quer revender
por mais do que investiu. Quer sejam casas, matérias-primas, moeda, obras de
arte, ações, relações ou idéias.
Investimos naquilo que estimamos que irá adquirir valor e não perder.
Conseqüentemente, haverá cada vez menos "valor real" das coisas. O valor de
mercado, o valor especulativo, o valor estimado terá cada vez mais lugar. Nas
empresas mais competitivas no mercado mundial, que mostram o caminho que todas
as outras tomarão, paga-se hoje em dia os colaboradores mais preciosos com
ações, isto é, com vetores, capazes de subir e descer. Com símbolos que
implicam seus portadores na baixa ou na alta da empresa.
Haverá cada vez menos ocupações bem delimitadas e funções precisas, todo mundo
estará constantemente ocupado em fazer negócios em todos os campos: sexualidade,
casamento, procriação, saúde, beleza, identidade, conhecimentos, relações,
idéias. O "trabalho" mudará completamente de sentido. Já não saberemos muito
bem quando estaremos ou não trabalhando. Estaremos constantemente ocupados em
fazer negócios. Todos os tipos de negócios. O "desenvolvimento pessoal" mais
íntimo levará a uma melhor estabilidade emocional, uma abertura relacional mais
ampla, uma acuidade intelectual melhor dirigida e, assim, uma melhor performance
econômica. Mesmo os assalariados, que cada vez mais demandam remuneração em
ações, se tornarão empreendedores individuais, passando de um empregador a
outro, gerenciando sua carreira como a de uma pequena empresa, atentos a todas
as transformações do ambiente que podem lhes dizer respeito, prontos a se
informar em relação às novidades. A pessoa - torna-se uma empresa. Os que
criticam esse sistema já têm, em sua vida pessoal, exatamente o mesmo
comportamento que todos os outros. O Homo economicus não é uma ficção teórica
da ciência econômica, é a pintura moral da sociedade na qual entramos
irreversivelmente. E é esse modelo que a "competição cultural", a seleção
cultural das civilizações escolheu! Estranho! Incrível! Não é o desinteresse,
o devotamento a uma causa transcendente, nem a obediência que são os motores
mais eficazes do funcionamento coletivo, os mais eficazes para produzir
constantemente a novidade. É o interesse de cada um, o motor do interesse
individual distribuído em massa, que tende a maximizar, a longo prazo, uma
função global de cooperação social.
Não há mais "família" nem "nação" que se sustente: nos divorciamos, emigramos,
mudamos de região ou de empresa. Muitos laços são rompidos, mas isso para que
outras relações mais flexíveis, com um raio de ação mais amplo, refaçam-se mais
adiante. Quanto mais a circulação dos homens se acelera e se adensa, melhor se
tece o tecido global. Buscamos obstinadamente otimizar nossa situação em lugar
de nos contentarmos com aquela que, por acaso, nosso nascimento nos trouxe.
Buscamos ser os artesãos de nossa própria vida. É por perseguirmos a liberdade,
todos juntos e cada um por conta própria, que nos tornamos cada vez mais
criativos e solidários. Eis aí o sentido profundo da ampliação irreversível do
mercado: cada um trabalha para otimizar sua situação coordenando-se com os
outros. Os liberalismos econômicos e políticos, assim como a aspiração pessoal
pela realização, são diferentes aspectos de uma única ampliação da liberdade.


Por que as empresas tornam-se universidades

As grandes empresas tornam-se quase universidades: elas têm colóquios,
seminários, oferecem uma formação permanente, prometem o long life learning a
seus funcionários. Elas têm não somente departamentos de pesquisa "científica",
mas desenvolvem também pesquisa em marketing, gerenciamento, organização,
finanças, etc. Estão, sem cessar, em pesquisa e em aprendizagem para
compreender, conceber, produzir, comunicar, vender e se associar. Finalmente,
nas empresas mais avançadas, mais high tech, mais virtuais, nas empresas de
consultaria, programação ou de produção de jogos, sequer há departamentos de
pesquisa e desenvolvimento - todo mundo faz pesquisa e desenvolvimento, todo
mundo se torna empresário no espaço do saber. As grandes empresas e, cada vez
mais, as pequenas, todas as empresas em competição no mercado de trabalho
mundial, qualquer que seja seu tamanho, deverão estar em pesquisa permanente, em
autotransformação. São as famosas "organizações aprendizes". Quanto mais o
mercado no qual elas disputam é vasto e aberto, mais elas se parecem com
pequenas Repúblicas das letras. Inversamente, quanto mais elas se localizam em
um mercado cativo, menos elas têm concorrência e menos têm apetite para a
inteligência coletiva. É a competição que toma as empresas inteligentes, que
lhes faz utilizar todos os recursos do trabalho cooperativo em rede, da
engenharia simultânea, da intranet e extranet, que as fazem capitalizar sua
memória de empresa e suas competências, que as faz vender e consumir cada vez
mais informações e conhecimentos.
O mercado se equipou com infra-estruturas da comunicação e com modos de
funcionamento da comunidade científica porque, ele também, desde o surgimento da
economia da informação, não visa senão à inteligência coletiva. O Homo
academicus e o Homo economicus se fundem no momento em que a economia se toma
virtual, no instante histórico em que o mercado se toma um lugar sem fronteiras
de circulação das notícias, de troca de informações e de competição das idéias.
Quando o mercado se toma uma inteligência coletiva, os vendedores devem ter o
espírito de cooperação competitiva dos cientistas, devem adotar seu obsessivo
cuidado de honestidade, de originalidade, de citação e de referência (os
hiperlinks, os certificados, os copyrights, as marcas registradas). O lugar do
mercado e o da enciclopédia viva se confundem progressivamente no ciberespaço.

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