sábado, setembro 06, 2003

 
(( Vinho com Hitler causa protesto alemão ))

da Folha de S.Paulo

O governo da Alemanha formalizou um protesto contra a comercialização de vinhos de uma produtora italiana com rótulos que mostram o ditador Adolf Hitler e outros dirigentes nazistas.

Além disso, Berlim sugeriu que o governo italiano investigasse se a venda desses produtos não fere a legislação anti-racismo da União Européia.

A ministra alemã da Justiça, Brigitte Zypries, escreveu a seu colega italiano, Roberto Castelli, dizendo que os rótulos são "de mau gosto" e pedindo providências contra a produtora, a Lunardelli, de Udine. A venda na Itália é legal, e Castelli já informou que nada pode fazer. Processos de entidades judaicas movidos contra a empresa foram arquivados, pois a Justiça italiana considerou que os rótulos não exaltam Hitler.

A título de "série histórica", a Lunardelli lançou, em 1995, rótulos para "celebrar personagens da Itália e do mundo", como diz em seu site na internet. Desde então, foram criadas garrafas com figuras como Che Guevara, Churchill, Marx e Napoleão.

Nada se compara, porém, à controvérsia causada por rótulos que trazem Hitler, Stálin e Mussolini, trio responsável pela destruição dos conceitos de civilização em boa parte da Europa na primeira metade do século 20.

Os rótulos nazistas "homenageiam" também Hermann Goering, segundo homem na hierarquia do Partido Nazista, e Heinrich Himmler, chefe da SS (a tropa de elite hitlerista) e um dos principais comandantes do genocídio dos judeus na Europa durante a Segunda Guerra.

O diretor da empresa, Andrea Lunardelli, disse à TV alemã ARD que as garrafas de Hitler trazem as frases "Sieg Heil" (saudação nazista) e "Ein Volk, ein Reich, ein Führer" (um povo, um império, um líder) para atingir o mercado alemão.

A venda de produtos com imagens que remetam ao nazismo é proibida na Alemanha, mas as garrafas da Lunardelli são vendidas pela internet, o que dribla o veto. A Bavária está investigando se o vinho já circula na região.

"As garrafas são um sucesso de marketing", disse a Lunardelli à agência Associated Press, expressando aquilo que talvez seja a preocupação central da Alemanha: que Hitler se torne um "campeão de vendas".

A iniciativa da Lunardelli transforma Hitler numa simples mercadoria, um fetiche, por meio do qual a memória histórica em torno de seu nome se dilui até que não reste nenhum resíduo. E então esse vazio histórico pode ser preenchido sem nenhum senso crítico, com total indiferença pela barbárie hitlerista --é a banalidade do mal a que Hanna Arendt se refere.

O curioso é a retomada da imagem dos dirigentes do Terceiro Reich associada a uma bebida alcoólica --afinal, a bebida era um elemento central para impedir que os alemães manifestassem qualquer interesse pelas pessoas que tinham de matar, conforme mostra Norbert Elias em "Os Alemães".

Somente meio século nos separa das atrocidades cometidas pela Alemanha nazista. No entanto parece que esse tempo foi suficiente para que tudo o que aconteceu seja objeto de relativização, quer para alimentar o ódio neonazista, quer para servir de mote publicitário para vender um produto. Difícil saber qual das duas utilizações é a mais perversa.


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